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Literatura

Daflon sobre o drama de guerra: “uma trama complexa e dolorosa que nos mareja os olhos”

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Fábio Daflon prestigiando o lançamento quádruplo de Romulo Felippe

Segundo ensaísta, membro da Academia Brasileira de Médicos Escritores,  “a poesia da prosa no romance de Romulo Felippe nos remete, comovidamente, à grandeza dos seres humanos”

por Fábio Daflon (escritor, ensaísta e médico); membro da Academia Brasileira de Médicos Escritores 

“Romulo Felippe é jornalista e escritor, ocupa a cadeira 9 da Academia Espírito-Santense de Letras. É autor dos livros Monge Guerreiro, uma fantasia medieval publicada em português, inglês e italiano (2018); Reino dos morcegos, uma fantasia juvenil (2018); O Farol e a Tempestade, romance (2019). Publicou também os livros Quando entrevistei Jesus, sobre uma Jornada na Terra Santa (2022); Mundos incríveis além do nosso (2022); O Fogo Eterno do Dragão (2022). Participou também da coletânea portuguesa Entre Monstros e Dragões. Durante a pandemia começou a produção de O Lanceiro Romano para o mercado italiano.

A guerra não é metáfora, mas inúmeras vezes, na literatura, no cinema e no teatro a guerra suscitou textos e roteiros, às vezes tendo como pano de fundo o amor e seu etos. Tratamos aqui de pensar e sentir os dramas contidos no romance Pássaros negros na neve, de Romulo Felippe, ambientado nas cordilheiras das Dolomitas, norte da Itália, onde vivia a família Domenichelli, composta por Giorgio – o pai e ex-combatente da Primeira Grande Guerra (PGG), e Fridda – a mãe – de Gianna Domenichelli, no dia em que completava dezesseis anos, durante a Segunda Grande Guerra (SGG), no ano de mil novecentos e quarenta e três. O livro nos mareja os olhos por causa da amorosidade dos seus personagens.

O título Pássaros negros na neve se refere, inicialmente, às gralhas,  esvoaçantes no entorno do sítio Picollo Cielo, casa dos Domenichelli, lugar algo distante das batalhas campais, no qual se vivia com relativa tranquilidade, antes da queda de caça da  Luftwaffe causada pelo piloto austríaco Hans Maximilian Hoffman, convocado contra a sua vontade pelas forças armadas alemãs, simulando uma pane de motor do caça, quando na verdade abrira o tanque de combustível, a fim de evitar o cumprimento da missão de assassinar vinte e oito judeus, sem saber que isso traria consequências trágicas para aquela família italiana.

Porque, involuntariamente, levou ao local um grupamento nazista de sete homens comandados pelo major Friederich Fisher: sargento-chefe Kraus, primeiro-cabo Krüger e os soldados Müller, Becker e Lange, que terminou por assassinar o pai de Gianna, obrigando Fridda a fazer uma refeição para todos, depois de terem perpetrado um estupro coletivo contra Gianna, obrigando-a a descer ao porão, tendo sido o piloto o último da fila a provocar os gritos da moça, Das Bergmädchen, a garota das montanhas, como chamou-a o major Fisher, também ex-combatente da PGG perdida pelos alemães.

Estupro gerador duma filha, Emma Domenichelli, muito tempo antes da possiblidade do teste do DNA, que começou a ser realizado nos anos oitenta do século vinte. Estupro no qual, provavelmente, contraiu e incubou uma tuberculose, apesar do seu viver isolado.

Nos primeiros capítulos:  O Gigante que devora os filhotes, As flores, As gralhas e a alcateia, As guerras que habitam nossas almas e Pássaros negros na neves, estão contidas as revelações sobre como Gianna e Maximiliano sobreviveram aos tedescos, mesmo após a morte de Giorgio e de Fridda.

Fatos todos relatados minuciosamente no diário de Gianna, ao qual Emma não terá acesso até à morte de seu pai Maximiliano Domenichelli, que assumiu as funções de camponês criador de ovelhas produtoras de lã, depois de Giorgio, para viver com a órfã Emma, entre ovelhas, lobos e gralhas, dentro da bela paisagem das Dolomitas por cerca de três décadas.

Depois dos primeiros capítulos citados, o texto nos remete à década de setenta, às suas referências culturais e ao passado mais recente de Emma, dez anos atrás nos anos sessenta, quando fazia faculdade de veterinária, curso não concluído, mas que a levou a conhecer Dominik, Dom para os íntimos. Ocasião em que houve um flerte entre ambos, Emma e Dominik, – o bastante para que nunca deixassem de se amar.

O piloto Dom, na verdade, queria ir às Dolomitas para resgatar os fatos circunstantes à queda do avião de seu pai, achar o avião nazista e saber toda a verdade. Não foi sozinho a essa missão, levara consigo Amelie com quem tinha uma relação aberta, que não durou mais depois do encontro de Emma e Dom, quando fizeram amor.

Sem saber nada sobre a história de como foi gerada, Emma encontra Dom; sem saber nada sobre a verdadeira história de seu pai, Dom encontra Emma. Ele se torna amigo do pai de Emma. Emma se torna amiga de Amelie, que se apaixona pelo sargento Giuseppe, um carabineiro. Há uma ciranda amorosa. Dom conversa apenas com Giuseppe sobre um dos motivos pelos quais quer ir às Dolomitas.

É quando Emma e Dominik podem descer ao porão e resgatar o diário mantido por Gianna Domenicheli, no qual são revelados todos os mistérios. Indo além da leitura do diário da mãe, a filha decide procurar seu tio Andreas, o partigiano, que reconhecera o bom caráter do pai adotivo ou biológico de Emma, viagem que resultará na leitura de uma carta por Gianna.

A trama é complexa e dolorosa.

Tecida a trama, falaremos daqui a pouco dos deuterogonistas. Mas, antes, é esclarecedor dizer que Gianna, com seu diário, é protagonista e narradora, que o livro tem vários protagonistas além de Gianna, que o autor intermeia sua própria narrativa com a narrativa existente no diário, que Maximiliano, Emma e Dom protagonizam o livro tanto quanto a Gianna narradora, que com a leitura do diário pela filha e por seu namorado retoma protagonismo na elucidação dos fatos, não só por causa do diário, mas também por uma correspondência epistolar para seu irmão Andreas – o partigiano.

Entre os personagens também há o cão são Bernardo Alfie, Killian, o falcão de Dom, os lobos, as gralhas e a cordilheira das Dolomitas, entre outras referências toponímicas. O domínio do autor sobre a geografia dos fatos é interessante e mostra a vivência ou a pesquisa sobre a área.

Com exceção de Killian, falcão cuja asa lesada impede-o de voar, todos os personagens têm participação direta na trama. Killian, cuja lesão na asa foi tratada com gordura de ovelhas recomendada por Maximiliano se recupera e voa ao fim da história. Voo que simboliza a superação do trauma. Fim que nos remete à grandeza dos seres humanos da família Hoffman e Domenichelli.

A poesia da prosa no romance Pássaros negros na neve nos remete, comovidamente, à tal grandeza. E não só à grandeza do amor, pois há também a  religiosidade  dos  personagens  principais,  representativa  da  essência  não apenas em seu sentido místico, tantas vezes equivocado, porque durante toda a narração do livro há a dignidade do tratamento invulgar conferido pelos membros da família uns aos outros, e a vingança acontecida no livro contra os tedescos adveio da necessidade de autodefesa, não havendo nada mais ardiloso do que o envenenamento,  como  o  acontecido  contra  aqueles  que  caíram  do  céu,  antes poupados  até  mesmo  pelos  senhores  da  guerra.  Na verdade,  desculpem  a redundância,  a  busca  da  verdade  para  superação  da  dor  se  dá  sem  que  os personagens em nenhum momento tenham perdido a sua essência boa, sem a qual é impossível, cremos nisso, a superação de qualquer adversidade.

Ler livro tão bom exige perspicácia e conhecimento histórico acerca da Segunda Grande Guerra e dos anos setenta do século XX. É muito interessante como o autor  nos  fala  dos  armamentos  e  dos  vestuários  dos  nazistas  e  do  tempo  da guerra da perspectiva de uma família que tentou se isolar do conflito; citações das músicas dos Beatles são uma das delícias do texto, há também a citação do relacionamento aberto entre Dom e Amelie, algo em voga nos anos setenta. O leitor  compartilha  de  todas  as  angústias  desenhadas  no  texto,  o  quadro completo vai se esboçando aos poucos. Existe a distração que é perda de tempo.

Há a leitura que é perda de tempo! Não é o caso de Pássaros negros na neve, cujo   conteúdo   vale   a   pena   conferir   não   só   pelo   bom   vernáculo,   mas principalmente pelo exercício da inteligência na percepção de que nada acontece de graça, pois durante todo o texto vão se formando elos cada vez mais tangíveis entre  os  personagens  e  os  fatos,  entre  as  ações  e  as  consequências,  entre  as reações  e  as  consequências  e  também  entre  as  omissões  e  as  consequências, isto é, o sigilo guardado por Maximiliano relativo à revelação das circunstâncias em que sua filha (filha?) foi gerada, omissão motivada por cuidado amoroso.

Pássaros negros na neve é um romance de amor, livro do amor real insofismável, e, sem colocarmos em segundo plano a história, podemos afirmar que o maior legado obtido  pelo  leitor,  ao fim  da leitura,  é  o  do  sentimento  amoroso  que  o texto provoca. Trata-se do amor que não se deixa frustrar, apesar de ambientado em um dos piores momentos da história da humanidade.

 

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